Muito valiosa a análise do Historiador Professor Dr. Airton de Farias sobre a origem da Fortaleza cidade e aqui reproduzindo para mais leitores na intenção de esclarecer mitos e eliminar os anacronismos da religiosidade contida na historicidade sobre Fortaleza, a bela Capital, de lutas, dinamismo e poesia.
"E volta à tona, mais uma vez, a discussão (chata) sobre o "fundador de Fortaleza" e o "marco zero" da cidade.
Essa questão é o chamado mito de origem, debatido pelos historiadores e comum a instituições, cidades, países, etc.
Busca-se encontrar uma origem gloriosa no passado, como se a grandeza do presente já estivesse destinada a ocorrer desde o inicio.
Ou seja, o mito de origem é contaminado pelo que é chamado na historiografia de anacronismo, atribuir a uma época elementos e percepções de outro período temporal (esse, por sinal, é o erro mais comum dos negacionistas - por isso é tão fácil desmascará-los, a exemplo do tal brasil paralelo, mas isso é outra prosa).
Assim, como se percebe, há um erro grosseiro de metodologia e de análise ao se buscar um fundador ou se estabelecer um marco zero para Fortaleza.
Porque não existia cidade alguma no século XVI ou XVII.
Os portugueses Moreno e Coelho ou o holandês Matias Beck não pretendiam fundar cidade alguma.
Havia um forte, em torno do qual surgiu um povoado, que foi ao logo do séculos se expandindo, isso espontaneamente. Não houve um ato "glorioso" de fundação de cidade alguma.
O núcleo urbano que um dia seria a cidade de Fortaleza apresentava pouca expressão política e econômica em seus primórdios.
Mesmo quando a Coroa mandou criar a 1 vila (1699), a aldeia do forte continuou com pouca expressividade.
Só terá expressividade, de fato, a partir do século XIX. Tanto que Fortaleza quase não tem patrimônio material da época colonial.
Mas a história não é produzida só por historiadores.
Outros atores sociais também produzem história.
Grupos têm interesse em controlar como o passado é contado.
Em função das disputas do presente que se fala do passado.
Os primeiros cidadãos que se preocuparam com a história destas terras (e somos gratos a eles, pelos documentos que preservaram) entendiam que a "cidade" foi fundada na Barra do Ceará, ora como ato de Martim Soares Moreno, ora como ato de Pero Coelho.
Não por acaso, o romance Iracema, escrito por José de Alencar, no século XIX, tratando do guerreiro branco Martim. É um exemplo clássico do mito fundador - no caso, do povo cearense.
Não obstante, nos anos 1960, Raimundo Girão, outro homem dedicado ao estudo da história local, lançou um livro chamado Matias Beck, fundador de Fortaleza.
Girão mostrou o óbvio: o que um dia seria Fortaleza organizou-se em torno do antigo forte holandês de Schoonemboch (construído por Matias Beck) e depois rebatizado, pelos portugueses, de Fortaleza de N. S da Assunção (onde se encontra hoje o quartel da 10ªRM, que por sinal, deveria passar para o controle do município e abarcar um museu de Fortaleza).
Há perto do forte vários espaços e instituições que denotam essa origem: a igreja, a sede da prefeitura, a organização das ruas, etc.
Não por acaso, o Centro é chamado de... Centro!!
O problema é que dizer que fora Beck o "fundador" de Fortaleza seria atribuir a um holandês e calvinista, um "herege" para os católicos, a "criação" de uma cidade cuja maior parte da população é católica ainda hoje.
Daí a polêmica surgida nos anos 60 entre intelectuais.
Morenistas e Beckistas travaram duros embates, apelando para os mais diversos argumentos, não raro, eivados de anacronismos todos.
A polêmica ganhou a imprensa e chamou a atenção dos grupos políticos e religiosos.
E aparece de vez em quando, como agora.
Tão polêmica que houve uma decisão salomônica: celebra-se, atualmente, não a data da fundação dos fortes, mas a elevação do povoado à condição de vila, 13 de abril de 1726, um episódio, sem dúvidas, católico e português.
Sobre essas questões todas, indico alguns livros como As razões de uma cidade, de Maria Auxiliadora Lemenhe; Soares Moreno e Matias Beck, de João Ernani Furtado Filho; Fortaleza, imagens da Cidade, de Antônio Luiz Macedo; Entre o futuro e o passado, de Antônio Otaviano Vieira; Fortaleza: expansão urbana e organização do espaço (no livro Ceará, um novo olhar geográfico), de Clélia Lustosa. Há outros ótimos livros ainda, não citados aqui em virtude do espaço."
Airton de Farias é Historiador com doutorado pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Professor da rede pública de Ensino Federal do Instituto Federal de educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE É também escritor autor de várias obras: História do Ceará, Ditadura Militar: a História em Lutas e As esquerdas e o Golpe civil-militar de 1964 no Ceará: análises de um estudo de caso, para não se prolongar muito
Crédito Foto: Airton dos M@res 15/12/2018 - Polo Novo Pabussu